Num sábado,
pelas proximidades do almoço, ver as ruas de Santa Felicidade
bastante movimentadas é uma constante. O tradicional bairro
curitibano, famoso pelos seus restaurantes, atrai milhares de almas
famintas, todos os dias, mas é claro que nos fins de semana o bicho
pega de um jeito diferente.
Desta vez,
porém, há alguma coisa a mais. Até mesmo quando as principais
cantinas, de “origem” italiana, são ultrapassadas, os
paralelepípedos continuam a apoiar um estranho congestionamento por
ali. Para qualquer outra pessoa seria, de fato, caso de não se
entender aquilo. Contudo, no nosso, era mais do que compreensível.
Localizado
em Santa Felicidade, o Estádio Francisco Muraro, pertencente ao
Trieste Futebol Clube, recebeu, no último sábado (17/11) a
finalíssima da Copa Suburbana de Curitiba. Aos desavisados, estamos
falando do campeonato de futebol amador disputado pelas equipes dos
mais diversos bairros da cidade. E quando se fala em futebol amador,
talvez esteja se tratando de um dos últimos suspiros daquela faceta
romântica e autêntica do esporte bretão, que as novas gerações
não tiveram a oportunidade de conhecer. E isso se percebe tão logo
se compra o convite (nada de cartões magnéticos ou
ingressos), a “cincão”, para se assistir a partida. Aliás, as
folhas A4 penduradas na bilheteria, com o preço da entrada, deixam
bem claro que aquela é uma ocasião especial, e que os R$ 5,00 são
a título de “colaboração”, como consta expressamente nos
anúncios.
Lá dentro,
a fumaça do "churrasquinho de gato" se mistura a camisas dos mais
variados times. Ainda que a disputa do caneco esteja a cargo de
Iguaçú e Bairro Alto, aficionados não deixam de lado as suas
paixões principais, com um detalhe bastante interessante: não
raro se nota apoiados, lado a lado, no alambrado, coxas e
atleticanos, que conversam, riem e alimentam a utopia de gente como
este que vos escreve, de um dia ainda ver isso como regra, e
não exceção. Um pingo da rivalidade sadia, no mar de barbárie
e idiotice que tomou conta das torcidas, no chamado “futebol
moderno”. Aliás, é com o álibi do caos e do vandalismo, que hoje
proíbem o torcedor brasileiro de tomar a sua cerveja nos estádios.
Há falta de tato da polícia, abusos das facções organizadas,
impunidade aos infratores e a culpa é... Da cerveja. Cerveja,
inofensiva, companheira de todas as horas e que, ao menos numa
partida de Suburbana, jamais nos faltará. Ali a cerveja, por sinal,
custa menos do que a água mineral com a qual te extorquem em
qualquer estádio do Brasil. Não por menos, quando o sorveteiro
lista os sabores para um senhor que aguarda o início da partida,
houve um sincero “não quero sorvete não, eu quero é cana”.
Como em
qualquer mero bate bola, preparativos precedem o culto. Guardadas as
devidas proporções estruturais, no futebol amador também há
repórteres de campo, policiais fazendo exibições mais do
desnecessárias de suas armas, técnicos, massagistas e é claro, o
eterno e indispensável vilão dessa história toda: o juiz (ou árbitro, como
prefere a sumidade, Arnaldo César Coelho). Diferentemente da
realidade profissional, porém, todos aqueles se comunicam
constantemente com a torcida, e de tempo em tempo o bandeirinha vem
cumprimentar um camarada que lhe chama no alambrado. Uma
senhora bateria de foguetes é então disparada, sendo que alguém
tropeça no arranjo, e aí dá-lhe rojão estourando para cima de
todo mundo. Os mais pessimistas diriam que se deu ali o lance mais
emocionante da partida, que ainda nem começou.
Rola a bola.
Os buracos no gramado, o cabelo branco do goleiro e a ausência (é,
ou não é, uma benção?) das chuteiras
coloridas-sofisticadas-cheias-de-nove-horas, te confortam com o fato
de que sim, isso é futebol amador. Porém, não há como deixar de
lado os “flashbacks” em relação ao futeba profissional. O
principal deles, por óbvio, se dá quando alguns rostos conhecidos
são identificados na “peleja”. Do lado do Iguaçú, por exemplo,
estavam Laércio (autor do primeiro gol do Coritiba na Libertadores de 2004) e Luizinho Neto (ex-lateral bastante
comemorado pelos atleticanos), e no do Bairro Alto Rogério Corrêa
(Campeão Brasileiro pelo Atlético em 2001) e Edmilson (ex-atleta de Coritiba e Palmeiras).
Hoje, a Copa Suburbana conta com cerca de vinte ex-atletas
profissionais, e a logística das equipes caminha cada vez mais em
direção ao... Profissionalismo. Ainda assim, a média de
treinamentos dos times que participam do torneio não ultrapassa duas
sessões semanais – que acontecem, geralmente, no período noturno, a fim de
possibilitar que os atletas desempenhem outras funções
profissionais (eita palavrinha do djanho!) durante o dia.
Num jogo
pegado, de ares ainda mais dramáticos por culpa da chuva e de um par
de expulsões, o Iguaçú, com um gol assinalado pelo já citado
Laercio, ainda no primeiro tempo, leva a melhor. A festa da equipe de
Santa Felicidade, para os heróis do título – já com o troféu em
mãos – toma boa parte do estádio, além, é claro, das suas
imediações. E na volta para casa, todos, sem exceção, levam
consigo uma certeza que, de tão certeza, se transforma em verdade
absoluta: fomos testemunhas, por mais noventa minutos, daquilo que
costumam chamar de futebol – em seu estado mais puro, sincero e
brilhante.